14 Outubro 2022

Fundações a postos para enfrentar desafios do presente e do futuro

Conferência internacional organizada pelo CPF reuniu especialistas na Fundação Calouste Gulbenkian para refletir sobre lugar da filantropia no mundo de hoje

Qual o estado do mundo? Que mundo queremos? É este o mundo que queremos para as novas gerações? Estas foram as três grandes questões que serviram de ponto de partida à reflexão dos participantes na conferência internacional “Os desafios da sociedade e o lugar da filantropia no mundo de hoje”, organizada pelo Centro Português de Fundações, que decorreu a 10 e 11 de outubro, na Fundação Calouste Gulbenkian, no âmbito dos Encontros Ibero-americanos da Sociedade Civil (EISC).

O primeiro dia de conferência teve como keynote speakers o sociólogo António Barreto e o filósofo basco Daniel Innerarity. O primeiro aproveitou os trinta minutos de intervenção para fazer uma viagem à história, à etimologia e ao potencial da filantropia. “No seu conceito mais básico”, explicou António Barreto, “filantropia é o que se faz por amor à humanidade, ao próximo, aos outros; alargando o sentido, é cuidar dos outros sem ganho; sendo mais específico, é ajudar quem mais precisa, os mais vulneráveis e necessitados”.

Mas porque os benefícios da filantropia e da intervenção do poder político – através da ideia de estado social, por exemplo – se podem, por vezes, sobrepor, o sociólogo identificou duas linhas que distinguem a ação de um e outro: a liberdade e o humanismo. “O estado não dá o que é seu, apenas cumpre o seu dever (…) já a filantropia pede liberdade de escolha e fraternidade de gesto”, sintetizou.

Ao elogio da filantropia de António Barreto, Daniel Innerarity respondeu com a necessidade de uma abordagem holística aos desafios da sociedade. “Se queremos solucionar algo, temos, antes, de solucionar tudo”, sentenciou.

O ensaísta recuperou as palavras do filósofo francês Bruno Latour, falecido na véspera da intervenção, que dizia “oxalá tivéssemos uma crise” porque, acrescentou Innerarity, “crise é uma palavra que nos descansa, definida no tempo, que tem um início e um fim”, mas o que temos agora “é um conjunto de crises”. “Tudo o que façamos tem efeitos secundários”, explicou Innerarity, “resolve-se um problema e cria-se outro como consequência da resolução do problema original (…) porque há demasiadas coisas conectadas com demasiadas coisas”.

Para o filósofo basco, qualquer mudança substancial tem de emergir da própria sociedade porque “o sujeito que cria estas crises é que tem que as solucionar, não há nenhum governo que o faça, tem de ser a sociedade a fazê-lo”. E deu o exemplo recente da gestão da pandemia. Na sua perspetiva, “o vírus agitou muito, mas mudou quase nada”, no sentido em que a intervenção direta do poder político introduziu as mudanças necessárias para lidar com as circunstâncias do momento, mas não necessariamente para lidar com o futuro, porque “as sociedades não se mudam de forma vertical, elas são resistentes às mudanças e às transformações”.

Daniel Innerarity defende, por isso, uma abordagem mais holística aos problemas, que contrarie a consequência da noção de diferenciação funcional, de que “a economia tem uma lógica, a política tem outra, a cultura tem outra, e que é ilegítimo a intervenção de uma área noutra”. O filósofo considera que “quando há muitos atores para intervir num problema, tendemos a entender isso como mais um problema que uma solução” e que essa perspetiva tem de mudar. Porque é necessária ação, explica, “não é dizer que se não podemos solucionar tudo, então nao fazemos nada”.

O segundo dia de conferência projetou a discussão para o futuro. O painel de oradores contou com Andrea Segovia, Presidente da Fundação Potenciar (Argentina), Maria Manuel Mota, cientista e diretora do Instituto de Medicina Molecular, e Carlos Mataix, diretor do Centro de Inovação Tecnológica para o Desenvolvimento Humano da Universidade Politécnica de Madrid.

Partindo da experiência recolhida no trabalho desenvolvido na América do Sul, Andrea Segovia refletiu sobre as noções de sustentabilidade e solidariedade intergeracional. A Presidente da Fundação Potenciar alertou para a necessidade de apostar num “desenvolvimento sustentável, que é aquele que satisfaz as necessidades atuais sem comprometer a capacidade das gerações futuras satisfazerem as suas próprias necessidades”. Considerou, por isso, essencial uma integração multigeracional na discussão e definição de estratégias de combate aos desafios. “A solidariedade intergeracional é absolutamente crucial. Sem um espaço onde possa haver diálogo entre as gerações mais jovens e as mais velhas, não será possível desenvolver uma solidariedade sustentável”, explicou. E se, encontrado o espaço comum, houver ainda distâncias de linguagem entre gerações? Aí importa manter o espírito aberto e, concluiu, “ninguém tentar impor nada a ninguém”.

A cientista Maria Manuel Mota usou a experiência recente da pandemia de COVID-19 para refletir sobre o que mudou e ficou na relação entre ciência e sociedade. A diretora do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes considerou que a pandemia permitiu à sociedade reconhecer a importância da ciência. Coube aos cientistas liderar o processo que nos levou da identificação de um conjunto de casos de pneumonia atípica na China ao desenvolvimento em tempo recorde de vacinas para fazer face à pandemia.

Maria Manuel Mota identificou, contudo, algumas das dificuldades sentidas nesse período, nomeadamente na gestão de expetativas e na identificação de uma linguagem comum a cientistas e cidadãos.

Sobre a gestão de expetativas, Maria Manuel Mota sublinhou que há um foco excessivo na ciência aplicada à resolução imediata de problemas, sem que se observe o mesmo grau de atenção a todas as descobertas e falhas que antecedem essa fase, aquilo que chamou “a descoberta de um admirável mundo”. E deu o exemplo das vacinas mRNA contra a COVID-19, cujo desenvolvimento e produção num calendário que surpreendeu até os mais otimistas, lembrando que isso só aconteceu porque havia já décadas de conhecimento acumulado, sem uma aplicação prática desta dimensão. “Neste domínio”, concluiu, “as fundações podem ser um forte apoio”.

A cientista falou ainda da necessidade de reforçar a comunicação sobre ciência e de encontrar um alfabeto comum com a sociedade. Maria Manuel Mota explicou que, durante a pandemia, os cidadãos olharam para os cientistas à procura de respostas sobre como viver e interpretar as circunstâncias e que, regularmente, manifestaram frustração porque “hoje era dita uma coisa e amanhã outra”. Sublinhou que é importante dar a compreender que, em ciência, as conclusões devem ser sempre interpretadas como algo circunscrito no tempo e no espaço e à luz da informação disponível num determinado momento e, como tal, a posição da ciência pode evoluir no tempo e é até expectável que isso aconteça.

O painel ficou completo com a intervenção de Carlos Mataix sobre inovação e coesão social. O diretor do Centro de Inovação Tecnológica para o Desenvolvimento Humano da Universidade Politécnica de Madrid argumentou em torno das dificuldades em estabelecer colaborações, em colaborar para mudar. “Colaboramos demasiado tarde”, anunciou, apontando a natureza competitiva e transacional dos ecossistemas de desenvolvimento como causa. “Passar de um mundo transacional para um transformacional não é simples”, afirmou, antes de sublinhar que é, no entanto, possível. Deu, sobre o tema, o exemplo do projeto citiES 2030, um esforço europeu que pretende ter 100 cidades inteligentes e neutras em termos de emissão de carbono até ao final da década. Em Espanha, Barcelona e Madrid são duas das sete cidades envolvidas e o projeto permitiu que os autarcas da capital espanhola e da cidade catalã se sentassem à mesma mesa e se comprometessem com um mesmo propósito, apesar da distância ideológica entre ambos.

Carlos Mataix destacou ainda o papel que as fundações podem aprofundar neste contexto: financiar e apoiar ecossistemas de mudança, investir em relações transformacionais, procurar entendimentos e incorporar a dimensão social da transformação.

Em suma: foram dois dias de reflexão profunda sobre os principais desafios que a sociedade de hoje enfrenta e sobre os papeis que as fundações, através da sua ação filantrópica, podem cumprir nesse contexto, num alinhamento que contou ainda com intervenções de António Feijó, Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, Maria do Céu Ramos, Presidente do Centro Português de Fundações, Javier Nadal, Presidente da Asociación Española de Fundaciones e Armando Casis, Presidente do Conselho Diretivo dos Encontros Ibero-americanos da Sociedade Civil, na sessão de abertura; Leonor Esguerra, membro do Conselho Internacional do Movimento Ibero-americano do Setor Terciário e membro do Conselho Consultivo dos EISC (Colômbia), Jorge Villalobos, membro do Conselho Consultivo dos EISC (México) e Léo Voigt, Secretário Municipal de Desenvolvimento Social de Porto Alegre, Diretor-Presidente da Fundação Gerações e membro do Conselho Consultivo dos EISC (Brasil), num painel de reflexão sobre a conferência; José Pena Amaral, membro da Comissão de Estratégia para Portugal da Fundação ‘La Caixa’, com uma apresentação da referida fundação; e André Moz Caldas, Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros.


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